domingo, 30 de agosto de 2009


Não sei o que eu tenho com esse horário, mas todos os dias entre as 2:30 e 3:00 da manhã me vem uma inspiração imensurável. A madrugada é a hora dos artistas. Artistas não são pessoas comuns, nós acordamos quando as pessoas comuns vão deitar e enquanto elas dormem, nós ficamos aqui, andando ao redor da casa, tentando não morrer de agonia, tentando não se afogar com as emoções, não menosprezá-las e nem desperdiçá-las. "Não é um dom e sim um mal incurável", já dizia um antigo professor meu da USP. Eu morei em Londres um tempo, enquanto fazia minha pós em Literatura Inglesa, por lá conheci muitas pessoas interessantes...Mas como poderei dizer? Os ingleses têm uma maneira peculiar de interagir, são pessoas solitárias, que confiam apenas em si, uma vez ou outra encontrava artistas que quisessem mesmo falar sobre sua arte, sobre os livros que liam ou sobre o que estavam escrevendo, na maioria eram muito fechados, restritos ao seu próprio mundo. Foi lá em Londres, que comecei a tentar entender o que me levava a escrever, apesar de não ter encontrado a resposta por lá. Mas entendi, desde cedo, que quando eu começava a escrever eu nunca sabia sobre o que escreveria, era apenas algum impulso que meu cérebro mandava ao coração e eu obdecia, o contexto, o final, tudo era totalmente inesperado, mas nem por isso menos digno de meu respeito.
Londres foi uma grande experiência, adquiri muito conhecimento por lá e comecei a ser respeitado no mundo Literário, escrevia constantemente aos meus pais e sentia saudade de uma duzia de amigos. Uma vez ou outra sentava num pub pra tomar um uísque e pensar um pouco.
Quando voltei ao Brasil, já por volta dos meus 32 anos, a USP me mandou pra Bahia pra fazer uma pesquisa aprofundada sobre o tabalho de Jorge Amado, então eu parti para lá.
Já instalado e depois de uns meses tralhando sem parar, certo dia conheci uma baiana muito charmosa, de nome Alice. Onde já se viu? Uma baiana de nome Alice? Achei estranho de princípio, mas acabei de acostumando...
Sempre achei amar uma palavra muito forte, então por muito tempo relutei em dizer que a amava. Mas com o tempo e a intimidade, acabei me entregando a essa palavra, mas eu nunca tive certeza de meu amor por aquela mulher, mas como nunca me apareceu algo mais forte do que o laço que eu tinha por ela, acabei aceitando que a amava. Ela era doce e me cuidava com uma dedicação impecável. Tivemos dois filhos bonitos, todos muito parecidos com ela. Mesmo depois de ter terminado meu trabalho sobre Jorge Amado, continuei na Bahia, já que era a cidade que minha esposa gostava tanto. Montei um escritório e fazia consultoria de Línguas, vez ou outra a Universidade me mandava umas pesquisar a realizar. Tínhamos dinheiro no Banco, casa própria, uma vida confortável.
Eu não era homem de muitas aventuras, mas certa vez andava eu pelo Pelorinho, até que encontrei com certa baiana. Nunca liguei muito pra essas figuras do folclore da cidade, mas aquela me chamou a atenção. Ela se encontrava em frente a uma Igreja, ajoelhada e rezava muito. Fui até ela e fiquei em pé ao seu lado. Depois de uns cinco minutos, ela virou e me olhou a encarando.
- O que você procura, moço?
- Eu não sei. Só achei que deveria parar pra lher olhar. Está tudo bem?
- Sabe, os tempos não são mais os mesmo...Os orixás andam zangados com as pessoas, ninguém sabe mais viver, amar, ninguém tem mais fé..fé na vida. Como podem os homens viverem sem fé?
- Vai ver a fé levou muita porrada na cara, não pagou a conta do gás, de telefone ou a faculdade do filho.
- Não fale isso, não subestime o poder da fé e nem dos Orixás.
- Isso existe mesmo? Essa história de Orixás e tudo mais?
- Claro. Se não como você saberia que deveria ficar aqui parado me olhando? Ou como eu saberia que você quer saber de onde vem a inspiração pro seu escrever?
Naquele momento eu fiquei pasmo...
Mas era possível que ela tenha escutado uma conversa ou algo assim né? Afinal, em Salvador eu tinha alguns amigos e conversava esse tipo de coisa com eles. Mas como qualquer pessoa, eu perguntei a ela como ela sabia disso e ela me disse que apenas sabia.
Ela perguntou se eu tinha tempo, se podia sentar pra conversar agora e eu disse que tudo bem, que eu podia conversar agora. Ela me puxou pra escadaria da Igreja e ali ficamos sentados...
Tá aí uma coisa que eu sempre gostei de Salvador, essa conexão com o passado. Por um momento eu podia jurar que estava numa cena do século XVII ou XVIII!
- Pois bem...eu tenho a resposta pra sua pergunta, mas não sei se é a resposta que te faria acreditar.
- Tente me contar..
- Certa vez, eu estava no terreiro e chegou um moço. No começo eu não sabia quem ele era, mas logo fiquei sabendo que ele era uma espécie de espírita, um sensitivo. Eu sempre olhei torto pra gente que se diz sensitiva, então por um tempo mantive meu pé atrás. Um dia, eu estava na parte detrás do terreiro, em uma sala que nós usávamos pras comemorações, porém, em épocas que não haviam festas, a mãe-de-santo me deixava usar a sala pra pintar. É, eu costumava pintar uns quadros, nada que eu visse um futuro grandioso, afinal eu já tinha aceitado meu destino e estava feliz com isso, mas é que eu achava que tinha algo dentro de mim que era aprisionado e que eu precisava libertar de alguma maneira. É assim que começa a inspiração de qualquer artista: de suas agonias, de seus temores, dos seus conflitos, ou seja, a matéria-prima de nossa inspiração são as piores coisas que podem existir dentro de nós. Pórem, nós, artistas, somos capazes de transformar essas coisas terríveis em obras de arte. Pois bem, eu estava de olhos fechados quando aquele homem chegou e nem percebi sua presença... Eu peguei o pincel e comecei a pintar de uma maneira rápida, até mesmo selvagem. Foi então que ele falou comigo e disse que o espírito ao meu lado tinha raiva, muita raiva e estava passando isso para mim. Eu larguei o pincel na mesma hora e tentei entender o que ele estava me falando. Ele sorriu e disse que não era pra eu me assustar, mas que espíritos assim nunca me fariam mal, mas é que eles também precisam se expressar e nos usam como veículo pra mostrar ao mundo o que lhes acontece, já aconteceu ou acontecerá. Eu não fiquei muito assustada, afinal, eu frequento um terreiro e estou acostumada a estas linguagens, de sentir e presenciar esses fatos, que são reais, queiramos ou não. Foi assim que eu descobri de onde vem a inspiração, descobri de onde vinha a sensação de alguma coisa está me guiando, me possuindo, pra me levar direito à obra dos meus medos. E à estes agradeço e você deveria fazer o mesmo.

Depois que essa mulher falou tudo isso, me veio uma sensação fria...por alguns segundos não acreditei e continuei calado. Afinal como eu poderia acreditar que o que eu achava que era obra minha de certa forma não existia? Não era minha. Depois, raciocinando direito, fui percebendo que realmente muitas coisas se encaixavam, as sensações descritas pela baiana, o terros de achar que a inspiração foi embora. Eu sei que era uma história meio sem pé nem cabeça, mas à esse ato de acreditar sem provas, sem evidências, nós, pragmáticos, damos o nome de fé. Eu não sabia, eu não via, não tocava, mas eu sentia e acreditava que aquilo era real. Alguma coisa dentro de mim havia mudado, como se finalmente tivesse encontrado a verdade e um dia todos nós vamos passar por isso, vamos encontrar alguma verdade que nos deixe perplexos e imóveis. É como se até então eu tivesse andado pelo mundo, tivesse escrito e reescrito, mas não soubesse porquê e como a única coisa em que sempre acreditei foi na Literatura e no poder destas palavras, de repente, para mim, elas tomaram uma forma nunca antes vista.
Eu levantei da calçada com um pedaço de papel dentro do bolso e com minhas convicções mudadas, a baiana havia me dado o endereço do terreiro onde tudo havia acontecido e disse que era pra eu passar por lá, sem compromisso algum. Sinceramente, eu iria sim. E acabei indo e gostei, com o tempo acabei me tornando frequentador daquele lugar, que me dava uma paz inexplicável, uma paz de conhecimento de mundo. Se antes eu achava que isso era algo descartável, agora eu sei que nenhum homem pode viver sem a fé em alguma coisa, em alguém ou em si mesmo.

Postado por d. @ 0 comments